segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A CORRESPONDÊNCIA - André Comte - Sponville



A Correspondência

André Comte-Sponville
Texto escrito para o catálogo oficial da exposição “Plis d’excellence”,
Museu do Correio, Paris, 1994

Por que se escreve uma carta? Porque não se pode falar nem calar. A correspondência nasce dessa dupla impossibilidade, que ela supera e da qual se nutre. Entre fala e silêncio. Entre comunicação e solidão. É como que uma literatura íntima, privada, secreta — e talvez o segredo da literatura.

As pessoas se escrevem porque não podem se falar: o mais das vezes por causa da distância, da separação, de um espaço que as falas não podem transpor. Como por ocasião de uma viagem ou de um exílio. Esse foi durante séculos o único meio de dirigir-se aos ausentes, de levar o pensamento aonde o corpo não podia ir, aonde a voz não podia ir, e talvez esse seja o mais belo presente que a escrita deu aos viventes: permitir-lhes vencer o espaço, vencer a separação, sair da prisão do corpo, ao menos um pouco, ao menos pela linguagem, por esses pequenos traços de tinta sobre o papel. O mais belo presente, mas não o único, nem o primeiro. A escrita teve uma função de arquivamento, sem dúvida, antes de ter uma de comunicação. Tratava-se de vencer o tempo, mais do que o espaço. De conservar, mais do que trocar. Ou, se a escrita servia para comunicar-se, era antes pelo deslocamento dos leitores do que pela mensagem. Gravava-se numa estela, na parede, diante das quais as pessoas passavam: imobilidade do texto, mobilidade dos leitores. Uma pirâmide é um envelope, se quiserem, cuja múmia seria a carta, cujos hieróglifos seriam o texto. Alguma coisa se diz aí, comunica-se aí. Uma mensagem, mas sem outro mensageiro além de si. Mas imóvel. Mas que antes percorre os séculos do que quilômetros. Tratava-se de vencer não a ausência mas a morte, não a separação mas o esquecimento, não a distância mas o tempo. Não de trocar, mas de manter. Como são frágeis os nossos envelopes, ao lado dessas tumbas! Eles se parecem conosco. Fragilidade da vida, das trocas, dos indivíduos, sem outra eternidade senão a do tempo que passa, deste presente que perdura, desses viventes que morrem… Fragilidade da correspondência, fragilidade de viver e amar. Escrevemos nossas cartas, não para vencer a morte, não para vencer o tempo, mas para habitarmos juntos, tanto quanto pudermos, apesar da separação, apesar do espaço, o pouco tempo que nos é dado em comum. Salvo megalomania particular, correspondemo-nos apenas com nossos contemporâneos (quando as estelas se dirigiam, antes, aos descendentes), e há nisso, parece-me, algo de essencial à correspondência, que faz sua pobreza e seu valor. Um vivente dirige-se a outro vivente, e não para os séculos dos séculos (como certos escritores, nem sempre os melhores, em seus livros), mas para compartilhar alguma coisa, um acontecimento, ou um pensamento, uma emoção ou um sorriso, muitas vezes quase nada e esse é o essencial de nossas vidas, para compartilhar essa pobreza que somos, que vivemos, que nos faz e desfaz, antes que a morte nos pegue, para não renunciar, enquanto respiramos e sejam quais forem os quilômetros que nos separam, à doçura de viver juntos, em todo caso ao mesmo tempo, à doçura de compartilhar e de amar. Contemporâneos da mesma eternidade, que é hoje. Passantes da mesma passagem, que é o mundo. Turguiéniev, em seu leito de morte, quis escrever uma derradeira carta a Tolstói: “Senhor, foi uma grande felicidade ter sido seu contemporâneo”. Nem todos somos Tolstói, nem tampouco Turguiéniev. Contudo, é um pouco isso que quereríamos dizer, em nossas cartas, pelo simples fato de escrevê-las, e embora na verdade não digamos. Se deixamos de lado as trocas puramente profissionais ou administrativas, quase sempre é de amor que se escreve, e por amor, seja amor de paixão ou de amizade, de família ou de férias, profundo ou superficial, leviano ou sério. Escrevo-te para dizer-te que te amo, ou que penso em ti, que me alegro, sim, de ser teu contemporâneo, de habitar o mesmo mundo, o mesmo tempo, de só estar separado de ti pelo espaço, não pelo coração, não pelo pensamento, não pela morte. Partir é morrer um pouco. Escrever é viver mais.

Nos nossos dias, por certo, o telefone poderia superar o obstáculo da distância, o supera de fato, transmitindo a fala através dos países ou dos continentes. Continuamos, porém, a escrever-nos, e não somente por economia. Várias pessoas mesmo, e sou uma delas, preferem antes receber uma carta a um telefonema. Por que razão? Porque o telefone é inoportuno, indiscreto, tagarela. Também, sobretudo porque há certas coisas que não podem ser ditas, ou que não se ousa, ou que não se sabe. Esse impossível que trazemos em nós. Esse impossível que somos nós. Há cartas que substituem a fala, como um ersatz, um substituto. Depois aquelas que ultrapassam, que com isso tocam no silêncio. Estas nada substituem, e são insubstituíveis. O que não se pode falar, há que escrevê-lo.

Lembro-me, adolescente, de ter trocado cartas com certa garota de quem estava perto todos os dias no liceu, com quem falava, e entretanto, as cartas formavam entre nós um laço mais essencial, mais profundo, mais íntimo. Às vezes elas passavam pelo correio, às vezes de mão para mão e isso nunca nos pareceu extravagante nem absurdo. Por que escrever quando se pode falar-se, quando se fala efetivamente? Porque nem sempre se pode falar, nem de tudo, porque a fala pode criar obstáculo para a comunicação, por vezes, ou condená-la à tagarelice, porque é preciso ter tempo de ficar sozinho, porque é doce pensar no outro em sua ausência, ainda que se deva vê-lo no dia seguinte, dizer-lhe o lugar que ocupa em nossa vida, mesmo quando ele não está presente, em nosso coração, em nossa solidão, e é isso que a fala jamais poderá fazer, uma vez que ela a suprime. A fala não nos aproxima de outrem, com muita freqüência, senão nos separando do outro apenas ficticiamente, apenas em superfície ou pela vitrina. Numa carta, ao contrário, só atingimos o outro ficando o mais próximo de nós. Mas atingimos, pelo menos isso acontece, e numa profundidade que as falas alcançam raramente. A escrita é mais próxima do silêncio, mais próxima da verdade. Ao menos pode sê-lo, e é isso que a justifica. Que adianta escrever, se é para fingir?

Seria preferível o silêncio efetivo? Nem sempre, nem um silêncio qualquer. Escreve-se porque não se pode calar-se ou porque não se quer. O silêncio também é um inimigo, também uma prisão, quando fecha, quando esmaga, quando mata, e às vezes mata. Escreve-se para devolver-lhe sua leveza, sua transparência, sua abertura, sua luz, mas sem o quebrar realmente, como faria a fala, sem sair dele, sem o renegar. Escreve-se no âmago do silêncio, aonde a fala quase não vai. Escreve-se onde se vive, onde se está, o mais próximo de si e do outro. É que já não se está separado pela voz, pelo olhar, pelo corpo (que sempre separa, enquanto os corpos não se tocam). É que também se tem tempo, pelo menos quando se escolhe a ocasião, como o outro terá o de ler você, de lhe reler, e quiçá anos mais tarde. Há uma eternidade das estelas ou das tumbas. É a eternidade de viver, mas sem véus, mas preservada, como uma garrafa lançada no oceano do tempo, como um pedaço do presente no infinito do futuro. As cartas de amor durarão mais tempo, muito amiúde, do que o amor. Elas sobreviverão a ele. Estarão ainda aqui, se se quiser, quando o amor estiver morto: atestarão o que tiver acontecido, o que eternamente continuará verdadeiro, mas que talvez, sem a escrita, teríamos esquecido ou perdido. Toda fala é contemporânea de quem a escuta, e morre com ele. Nenhuma escrita o é de sua leitura, sendo por isso que não morre. Entre o tempo da escrita e o da leitura, há como que uma distância assumida e abolida. Toda fala é do instante; toda escrita, da duração. É essa duração que o leitor descobre, redescobre, habita. Isso faz como que um tempo redescoberto, no vácuo do cotidiano, um pouco de tempo no estado puro, como diria Proust, e é isso a que chamam a eternidade: o tempo passa sem se perder, o presente que muda e continua, o devir permanece…

É onde reencontramos a literatura, ou melhor, não a deixamos pois que é aí que ela começa. Como uma fala eterna. Como um presente salvaguardado. Como uma duração liberta de si, e de tudo. Escrever é sempre escrever para alguém, ou por alguém, seja ele desconhecido, seja ele universal, e toda literatura, nesse sentido, é epistolar. A recíproca é verdadeira também. Uma carta, mesmo canhestra, é uma obra, uma criação, um trabalho, o que a fala quase nunca o é. Toda carta é literária. Um vivente se dirige a um vivente, no segredo de viver. Uma solidão confidencia a outra, no mistério de ser a si, no desconhecido de amar ou de ser dois. Um indivíduo aí se entrega, como pode, como quer. Com suas palavras, sua pobre escrita, sua pobre vida. Essa pobreza se parece conosco. A carta mais canhestra é mais comovente, se é verdadeira, do que um romance hábil, se ele não o é. É uma garrafa no mar, mas cujo destinatário se conheceria. Um presente que se dá, mas que nada tem a oferecer senão a si.

Porque uma carta é uma obra, seja ela qual for, é tentador fazer dela uma obra de arte, que valeria por si mesma. Nem todos são poetas, romancistas, artistas. Mas todos escrevem cartas, pelo menos todos aqueles que sabem escrever, e nunca se exprimirá o suficiente a miséria daqueles que não sabem, daqueles que são prisioneiros da fala ou do silêncio, do instante, do frente a frente. Que infelicidade não poder escrever cartas de amor, não poder escrever aos amigos, aos filhos, não poder lê-los, ser prisioneiro da ausência ou da separação! A escrita é um luxo, a escrita é uma felicidade, a escrita é uma liberdade. Que a injustiça venha intrometer-se aí, como de fato acontece, torna a injustiça ainda mais odiosa.

Uma obra, portanto, e uma obra de arte às vezes. Uns farão de suas cartas poemas, em verso ou em prosa, ensaios, confissões, sátiras, romances por vezes… Não é Madame de Sévigné que quer. A verdade é que a correspondência é também um gênero literário, claro que o mais difundido, e um daqueles, note-se de passagem, que melhor sobrevive às modas e aos séculos. Tenho mais prazer em ler a correspondência de Flaubert, George Sand, Turguiéniev ou Maupassant, do que ler ou reler seus romances. Nela eles são menos rebuscados, menos estetas, menos tagarelas, e mais verdadeiros. A correspondência de Abelardo com Heloísa, mesmo decepcionante, sobreviveu melhor que seus tratados, que agora só interessam aos eruditos. Depois, amo, na correspondência, que cada qual possa procurar nela o pequeno pedaço de si que não mente. Pois pode-se mentir numa carta como na fala, e talvez com mais facilidade. Mas isso é trair a linguagem, mas isso é trair a escrita, mas isso é trair o outro, e a si. As verdadeiras cartas são as cartas verdadeiras. É pelo que valem. É pelo que são tocantes. O vocabulário conta menos do que a sinceridade. O talento, menos do que o amor e a coragem.

Outros farão desenhos, ilustrações, colagens, e decorarão até os envelopes que endereçam. Por que não? A forma fala também. E toda beleza é boa. Escrevo este texto para o catálogo de uma exposição, no Museu do Correio. Quantos envelopes ornados, engraçados, originais! Quantas obras de arte em miniaturas! Não teria imaginado, sem essa exposição, até onde ia a inventividade de nossos contemporâneos, em todo caso de alguns deles, sua criatividade, seu talento por vezes. Quantos cuidados para uma única carta, para um único leitor! A exposição as trai um pouco, com a publicidade; mas é apenas uma indiscrição fugidia. Logo elas retornarão à obscuridade de onde vêm, com a qual a maioria se contenta, com seus pequenos envelopes discretos, corriqueiros, indistintos, e isso é bonito também, nesse anonimato da multidão, nessa intimidade inumerável do correio. Esses milhões de cartas que circulam todos os dias, em todos os países, como um gigantesco zunzum silencioso, como um formidável e imperceptível murmúrio, todos esses pequenos riachos de papel e de tinta, que formam como que um mar, que arrastam nossos segredos, nossas confidências, nossas lágrimas, e tudo o que é preciso para isso, organização, trabalho, humanidade inteligente e fiel (o que mais simples do que uma carta? O que mais complexo do que o Correio?), essa é uma das imagens mais verdadeiras de nossas vidas, todas tecidas de solidão e de desejos, de palavras e de silêncios, de amor e de cólera, todas condenadas à separação e todas a conjurando!

Uma carta pode sobreviver, e sobrevive às vezes, à morte de quem a escreve ou a recebe. Isso dá a ambos, quando pensam nisso, uma apreciação mais justa de sua fragilidade, de sua importância para o outro, um pelo outro, também do peso de cada palavra. Não é esse o caso de todas as cartas (muitas são de pura convenção, de pura rotina, de pura ou impura polidez), mas esse é o caso daquelas que contam, das únicas que merecem ser escritas, mesmo as mais simples, mesmo as mais nuas. O estilo não é o que importa. A correção não é o que importa. Uma carta vale mormente por sua intimidade, por sua doçura, pelo que contém de amor ou de segredo. Todo mundo pode escrever uma, pelo menos todos os que sabem escrever. Basta ser verdadeiro. Basta escrever o mais perto possível da vida como ela é, tal como parece, tal como passa e permanece, nossa pobre e pequena vida de mortais, como à espera de sabe-se lá o que, ou de sabe-se lá demais, como que à espera de si mesma, como que privada de si, e no entanto viva, tão viva, tão frágil, tão pungente de fraqueza e de banalidade, tão desamparada, tão desarmada, tão humildemente única e comum, como um milagre sempre malogrado, sempre recomeçado, nossa pobre vida de terrenos, nalguma parte do tempo, nalguma parte do universo, nossa pobre vida de humanos, sempre exposta ao amor e ao sofrimento, à solidão e ao encontro, e isso forma tão poucas coisas que cabe, ou quase, dentro de um envelope…Nada com que fazer uma história, nada com que fazer um romance. Justo o tempo de viver um pouco, de amar um pouco, de escrever um pouco – justo o tempo de enviar algumas cartas… Escrevo-te para te dizer que te amo e que vou morrer, para dizer que estou vivo, vivo ainda, e muito feliz de ser teu amigo, e muito feliz de ser teu amante. “Na medida em que somos sozinhos, o amor e a morte se aproximam.” Isso, que foi escrito numa carta, diz a verdade de todas.

Nossas cartas se parecem conosco, desde que o queiramos um pouco, e mesmo, às vezes, quando não o queremos. Frágeis como nós. Irrisórias como nós. Bela por vezes. Pobres e preciosas, corriqueiras e singulares, quase sempre. Um pouco de nossa alma introduziu-se ali, na pouca espessura de um envelope. Um pouco de nossa vida, na loucura do mundo. Um pouco do nosso amor, no deserto das cidades.

Por que se escreve uma carta? para habitarmos juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper. O eu, sem fechar nele. Isso não substitui a fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis, como a vida, como o amor, como um presente e são um presente. “Não é nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito, muito…” Não é nada, ou quase nada, contudo um pedaço do mundo e da alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração, tão próximo da grande distância.

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